A pandemia do Coronavírus traz consigo relações que consequentemente irão terminar no Poder Judiciário, seja pela falta de regulamentação por se tratar de assunto extremamente recente, seja pelo fato do consumidor e fornecedor não chegarem em um consenso , entre outras.
Com isso, é oportuno mencionar exemplos de situações que já estão sendo submetidos aos juízes.
A primeira e mais óbvia que está gerando o debate em ações refere-se ao direito do consumidor, uma vez que, devido ao surto em diversos países e regiões, os consumidores que adquiriram pacotes de viagens, por exemplo, estão buscando o ressarcimento ou ao menos a redesignação do passeio.
Como estamos diante de uma situação atípica, surge a necessidade de uma compreensão maior dos fornecedores de produtos e serviços, e até mesmo do consumidor.
Observando a Resolução n° 400 da ANAC, constata-se que não existe uma previsão expressa de remarcação ou cancelamento de viagens e voos por motivos de saúde pública que isente o consumidor de encargos como multas. Mas, por outro lado, o Código de Defesa do Consumidor expressa em seu art. 6°, III , que o consumidor será protegido a não pagar multa em situações inabituais, como enfermidades epidêmicas disseminadas em larga escala e sem controle dos órgãos governamentais.
De acordo com a regulamentação da Anac, o consumidor pode desistir da compra, sem qualquer ônus, em até 24 horas após o recebimento do comprovante da passagem aérea e desde que a compra aconteça com 7 dias ou mais de antecedência à data do voo. Na hipótese da compra ter sido realizada através de meios eletrônicos, o Código de Defesa do Consumidor prevê até 7 dias para requerer o cancelamento.
Entretanto, muitos consumidores não se enquadram mais dentro desse critério. Nesse caso, cada companhia aérea possui uma política de multa, tarifas e reembolso.
Segundo casos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), identifica-se um padrão de que as empresas aéreas reembolsem 80% do valor pago pelo consumidor, retendo 20%.
Podemos utilizar como exemplo a época do contágio do H1N1, o Tribunal de Justiça de SP (Apelação Cível 0017080-71.2010.8.26.0019) julgou um caso de cancelamento de passagens e pacotes turísticos entendendo que não era razoável exigir que a empresa aérea devolvesse a integralidade dos valores pagos pelos requerentes, sendo cabível a retenção do valor de 20% prevista contratualmente. [1]
A respeito do COVID-19, um caso recentíssimo foi julgado em caráter liminar pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios onde um casal acionou a empresa Decolar.com, uma vez que adquiriram passagens para uma viagem com destino à Europa, especificamente Lisboa/Portugal, com embarque em 16 de março, e, devido aos diversos casos do vírus e sua rápida disseminação, requereram a remarcação das datas das passagens sem custo ou taxas adicionais.
A juíza do caso deferiu a tutela obrigando a empresa a alterar a data da viagem, remarcando as passagens sem custo adicional. Argumenta que verifica a necessidade do adiantamento da viagem com novas passagens por motivos de força maior, por conta dos vários casos por todo o mundo e que, muito embora não seja, nas palavras da julgadora: “responsabilidade das empresas o fato extraordinário, a vulnerabilidade do consumidor nessas relações de consumo autoriza tal medida, pois a exigência de taxas e multas em situações como a atual, de emergência mundial em saúde, é prática abusiva e proibida pelo Código de Defesa do Consumidor” (Art. 6º)” (Proc. 0703587-59.2020.8.07.0020, 3ª Vara Cível de Águas Claras/TJDFT). De tal decisão cabe recurso ao Tribunal.
Situação semelhante foi submetida ao Judiciário do Rio Grande do Sul , onde o juiz da 1ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, também concedeu uma liminar para que as empresas Decolar.com, GOL Linhas Aéreas e ALITALIA procedam com a remarcação dos voos. Referido caso também comporta recurso à segunda instância.
Ademais, objetivando diminuir os efeitos da atual conjuntura decorrente do COVID-19, no dia 18 de março o ministro Tarcísio Freitas declarou que serão concedidas às companhias aéreas, através de uma Medida Provisória , um prazo maior para proceder com a devolução das quantias pagas pelos passageiros em viagens que foram canceladas por conta do vírus.
Pelo exposto, é visível que por ora nenhuma decisão é definitiva e com entendimento sedimentado, uma vez que a discussão deve chegar em breve aos Tribunais que poderão ou não reformá-las em algum ponto, gerando assim uma compreensão mais sólida sobre os casos envolvendo o COVID-19.
Contudo, fica claro que, muito embora haja a vulnerabilidade do consumidor envolvida, não deve ser desconsiderado o enorme ônus que recairá sobre as empresas na hipótese de terem de arcar com todo o prejuízo.
No momento atual, é preciso ter bom senso. A vida é inegociável. Entretanto, é necessário nos preocuparmos também com a saúde das empresas, pois provém delas o sustento da população.
No caso das agências de turismo e de transportes, é aconselhável que cancelem as viagens para destinos com focos de contaminação pelo vírus sem multas, em caso de solicitação do contratante, pois a continuidade das vendas de viagens por parte dessas empresas pode configurar a ciência de risco que deverão assumir.
É recomendado também que as empresas desse ramo ampliem os meios de informação ao consumidor sobre a doença e as formas de contágio, como por exemplo, publicações e desenvolvimento de links nas páginas e sites oficiais das empresas, de forma que o consumidor ao realizar a compra de passagem faça a constatação das formas de prevenção e que empresa está se empenhando para conter a disseminação do vírus.
É necessário redobrar o esforço para fornecer informações claras, precisas e ostensivas sobre as regras de cancelamento e alterações, para que o consumidor não enfrente dificuldades.
Disponibilizar opções de remarcação de voos também é uma alternativa favorável à ambos os lados, podendo ser incluído alteração de viagens sem custo adicional ou adiamento. Há também a possibilidade do cancelamento da viagem, sendo disponibilizado ao consumidor o valor como crédito para outras viagens, sem aplicação de taxas por esse serviço.
Orienta-se ainda que é indispensável a negociação entre as empresas e consumidores para que haja a melhor solução para esse conflito, lembrando que a pandemia e a falta de bom senso prejudicarão a todos e, dado o contexto, nenhum dos dois lados tem culpa.
Jaquelinne Vicentin Barbosa da Costa
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Advogada – Contencioso Civil Empresarial. Inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil Subseção de São Paulo sob n° 427.928. Pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil na Instituição Toledo de Ensino.
Juliana Augusto da Costa
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Advogada – Contencioso Civil Empresarial. Inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil Subseção de São Paulo sob n° 386.121. Pós-graduada em Direito Civil e Empresarial pela instituição Damásio de Jesus e pós-graduanda em Direito Processual Civil pela instituição ESA.
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